Com o crescimento da Internet e a consolidação
da chamada Sociedade da Informação muito tem sido dito sobre
os tais dos "hackers". "Piratas da Rede", "meliantes digitais" e outras
denominações que variam do ridículo ao romantismo
cibernético contribuem para a criação de uma atmosfera
mítica coberta de mistério e, certamente, equívocos
em torno destes personagens.
É comum deparar-se na mídia com este termo sendo usado
num sentido bastante pejorativo, conotando indissociável relação
com o crime e a ilegalidade. Seja nos filmes de Hollywood ou no jornal
cotidiano, os hackers usam seu profundo conhecimento do funcionamento dos
computadores e das redes de comunicações para perpetrarem
sofisticados delitos, causando danos a terceiros e/ou enriquecendo num
digitar de teclas. Colocando o sensacionalismo e a extravagância
de lado, isto tudo poderia estar correto exceto pelo fato de que os agentes
de atividades desta estirpe não são hackers, mas sim "crackers".
Esta confusão não é apenas um erro de tradução,
como afirma Rezende em [1], já que ocorre mesmo em sua língua
original, observando-se isso claramente na reportagem de popular, ainda
que não muito confiável, órgão de impressa
norte-americano referenciada pelo próprio texto citado. Na verdade,
segundo Pekka Himanen (foto), filósofo finlandês, em [2], a origem
deste equívoco remontaria a meados dos anos 80, quando surgiram
os primeiros crimes computacionais, e a mídia, não sabendo
como designar tais criminosos, aplicou o termo de forma um tanto infeliz.
Ora, se não são os tais meliantes digitais, afinal, quem
são os hackers?
A tradução literal da palavra poderia ser algo como talhador,
lenhador, o que não deixa de ter alguma relação com
o sentido originalmente concebido. Este sentido surgiu no início
dos anos 60 no MIT, sendo usado como autodenominação por
um grupo de programadores apaixonados por sua atividade. Com uma certa
boa vontade, pode-se imaginá-los como "lapidários" de código
escrito em linguagens de programação. Deixando-se tomar pela
analogia inspiradora feita por Rezende em [1], se uma linguagem de programação
puder ser comparada a uma linguagem natural, sendo o código-fonte
comparado a um texto, um programa a um livro e um programador a um escritor,
um hacker seria um poeta desta literatura.
Um hacker é uma pessoa
para quem a programação é uma paixão e que
compartilha os frutos de sua paixão com os outros, é um título
honorário, como reforça Himanen em uma entrevista em [3].
Não é um criminoso de computador. Em [2], Himanen traz o
que seria a definição de hacker compilada pelos próprios:
"uma pessoa que programa entusiasticamente e que acredita que compartilhar
informação é um poderoso bem concreto e que seja um
dever moral compartilhar a sua perícia escrevendo software livre
e facilitando o acesso a informação e a recursos computacionais
onde for possível", é alguém que "acha programar intrinsecamente
interessante, empolgante e divertido" [2].
Um outro ponto destacado pelo filósofo finlandês é
que um hacker não está limitado ao mundo da informática.
Praticamente, em qualquer área de atividade humana, podem ser encontrados
hackers. Eles seriam "experts" ou entusiastas de qualquer tipo. Pode haver
"hacker carpinteiro", "hacker jornalista", "hacker gerente", "hacker astrônomo"
ou hacker qualquer outra coisa. Em suma, "uma pessoa é hacker quando
é apaixonada pelo que faz e quer se realizar naquele trabalho" [3].
No entanto, esta definição ainda não é muito
conhecida ou difundida nos meios "formadores de opinião". Pior é
quando, mesmo sendo conhecida, ela é deliberadamente ignorada em
prol de uma suposta simplicidade destinada a "facilitar" o entendimento
por parte do leitor/espectador leigo. Como se não bastasse a argumentação
absurda e contraditória de justificar a criação de
confusão para elucidar a compreensão, este recorrente engano
tem significativas conseqüências. Além de dificultar
a correta assimilação de conceitos e dinâmicas da comunidade
da Rede, isto mistura meros utilizadores mal-intencionados (ou, por vezes,
apenas curiosos demais) de ferramentas prontas disponíveis aos montes
na Internet, os chamados "script kiddies", com os verdadeiros crackers
(que podem ocasionalmente ser hackers).
Estes crackers é que são
os responsáveis pelos verdadeiros crimes. São eles que dão
volumosas cifras de prejuízo a empresas e governos e, muitas vezes,
agem amparados por quadrilhas altamente especializadas. Assim, ao colocar
estas "tribos" totalmente diferentes em condição de igualdade,
a mídia acaba encobrindo a complexidade do sério problema
de segurança aí existente e dificulta sobremaneira o esclarecimento
de quem são os reais responsáveis por ele, sendo crassamente
injusta.
Injustiça esta que se torna ainda mais evidente diante da elucidação
das contribuições fundamentais dadas pelo hackers para o
embasamento tecnológico da sociedade emergente. Como destacado por
Himanen em [2], alguns dos símbolos mais conhecidos dos tempos atuais
- a Internet, o computador pessoal e softwares como o sistema operacional
Linux - foram criados primordialmente por alguns entusiásticos indivíduos
que começaram a concretizar suas idéias com outros de pensamento
semelhante, trabalhando em um ritmo livre. Rezende, em [1], compara a atuação
dos hackers em relação ao software com a ação
da seleção natural na evolução das espécies
naturais. Eles seriam uma forma de agentes seletores, que garantiriam a
sobrevivência dos mais aptos, descobrindo vulnerabilidades e falhas
de segurança nos softwares em uso e reportando os problemas encontrados
aos respectivos desenvolvedores, chegando mesmo a sugerir soluções
e correções.
Rezende destaca que, por vezes, para amenizar o erro de designação,
tais indivíduos são chamados de "hackers éticos".
No entanto, isto só piora a confusão, pois reforça
a idéia de que o hacker por natureza não é ético.
Tal suposição não poderia ser mais difamatória,
pois não apenas o hacker é ético em sua natureza original,
mas se pode até mesmo falar de toda uma "Ética Hacker".
Para entender melhor esta ética, é necessário antes
conhecer melhor o contexto histórico e social no qual ela surge.
O pensamento ainda predominante na sociedade atual e que marcou distintamente
toda a Era Industrial, de acordo com Himanen, é o que Max Weber
chamou de "Ética de Trabalho Protestante" em sua obra The Protestant
Ethic and the Spirit of Capitalism (1904-1905). Esta ética baseia-se
fortemente na idéia de que o trabalho é a coisa mais importante
na existência de uma pessoa. É ele que dá sentido à
vida. O trabalho é visto como um fim em si mesmo. Não importa
no que ele consista, ele deve ser feito da melhor maneira possível,
sem questionamento ou lamúrias. É uma questão de consciência,
é como um "chamado" divino.
Este ponto de vista só encontra precursores na vida monástica,
a qual sempre pregou que "o ócio é o inimigo da alma", e
contrasta fortemente com a visão geral predominante antes do século
XVI. Mesmo a Igreja considerava o trabalho (especialmente o mais árduo)
como uma espécie de punição. No dia santo, o domingo,
no qual até mesmo o próprio Deus descansou, não se
devia trabalhar. O Céu era um lugar onde, assim como no domingo,
ninguém precisava trabalhar. Enquanto que, no Inferno, os pecadores
são condenados a trabalhos eternos e inúteis, um terrível
sofrimento, como Dante Alighieri muitas vezes mostra no seu clássico
A Divina Comédia do século XIV. Pode-se dizer que, nessa
época, o propósito da vida era o domingo.
O que a ética de trabalho protestante faz é inverter este
paradigma, deslocando o propósito da vida para a sexta-feira. O
trabalho deixa de ser uma punição e passa a ser uma bênção.
Isto é um movimento tão radical que se pode dizer que o Céu
e o Inferno trocaram de lugar. Sísifo, que na mitologia grega tentou
enganar os deuses e foi punido com o fardo de empurrar eternamente uma
grande rocha até ao cume de uma montanha muito íngreme e,
quando ele estava preste a chegar com ela ao topo, a rocha caía,
tornou-se um herói, como ilustrado por Himanen [2].
Esta reviravolta de pensamento e principalmente na forma de se encarar
o trabalho caiu como uma luva para o desenvolvimento do então nascente
capitalismo. Esta justificativa de origem religiosa foi rapidamente tomada
e incorporada por ele, que logo a separou da religião e imprimiu
seus próprios mecanismos. Com isso, passou-se a poder falar em ética
protestante independentemente de fé ou cultura. Este fato foi a
base que permitiu o florescimento da Era Industrial, na qual os trabalhos
eram árduos e enfadonhos, mas era necessário que alguém
os fizesse, fosse na Europa ou no Japão.
Com o fim da Era Industrial e a consolidação do que está
sendo designado como Era da Informação, é natural
que se espere o surgimento de um novo pensamento que questione estes valores
vigentes, mesmo que o capitalismo ainda tenha chegado a este ponto com
considerável força. Força esta que pode ser vista
na formação da "nova economia" que, embora envolva significantes
diferenças na sociedade em rede com relação à
anterior industrial, é meramente uma nova forma de capitalismo.
É justamente neste cenário que emerge o que foi chamado anteriormente
de ética hacker.
De acordo com Himanen, a ética hacker, que deve ser entendida
abrangendo todas as áreas de atividade humana e não apenas
a computação, é uma nova ética de trabalho
que questiona a ética protestante e propõe um espírito
alternativo para a sociedade em rede. Embora seja mais próxima da
ética de trabalho pré-protestante, ela não concebe
este como sendo um castigo e não descreve o paraíso como
sendo um lugar onde não se faz coisa alguma. Na visão do
hacker, o sentido da vida está em dedicar-se a uma paixão.
Esta paixão é, na realidade, uma atividade significativa,
inspiradora e prazerosa para o indivíduo, seja ela rotulada como
"trabalho" ou como "diversão".
No entanto, a sua realização
nem sempre é apenas prazer e alegria, podendo envolver aspectos
menos interessantes e apaixonantes e mesmo muito trabalho duro e tedioso.
Ainda assim, o hacker está disposto a realizar este esforço
em prol de algo que considera maior. A significação do todo
faz valer a pena qualquer esforço despendido na execução
de suas partes menos atraentes. Além disso, é bem diferente
ter de fazer partes menos prazerosas ao realizar uma paixão do que
ter de se sujeitar permanentemente a um trabalho desagradável.
Um outro aspecto da ética hacker é uma visão fortemente
diferente do dinheiro com relação à vigente na sociedade
capitalista, na qual este é o maior e mais valorizado bem. Para
o hacker, o dinheiro é uma questão secundária. Não
é um objetivo de vida nem a razão do seu trabalho. Ele não
é o propósito de uma ação. Assim, um hacker
"pode se satisfazer com menos riqueza material ao perceber que sua verdadeira
paixão deu uma contribuição para os outros" [3] ou
para a sociedade de um modo geral.
Aliás, esta motivação social também é
um fator importante nesta nova ética. A realização
da paixão hacker está intimamente ligada com alguma espécie
de colaboração na construção de um bem maior
para a sociedade. Isto poderia ser visto até como uma influência
meio hippie, anos 60, do tipo "vamos construir um mundo melhor", mas tem
uma importância fundamental para a estruturação de
toda esta ideologia.
Talvez esteja no "hackerismo" o melhor exemplo do lado positivo da globalização,
entendendo-se "hackerismo" como um grupo de indivíduos realizando
suas paixões juntos e fora das estruturas de corporações
ou governos. Não importa a nacionalidade, cor, raça das outras
pessoas. O que importa é que elas estão juntas, provavelmente
por meio da Internet, para fazer coisas que acham interessantes e construtivas.
Obviamente, um movimento que se propõe a questionar o modelo
corrente não poderia passar sem causar desconforto naqueles que
estão bem estabelecidos e confortáveis beneficiando-se do
status quo. Pode-se especular, então, que esta "onda difamatória"
[1] que causa esta confusão toda na cabeça do cidadão
comum tenha origem nos "interesses da indústria de software proprietário,
procurando minar a confiabilidade pública no software livre" [1],
como sugere Rezende. Seguindo por estes caminhos, também não
se pode descartar a possibilidade de conluio ou mesmo de manipulação
da mídia, visando a proteção desta mesma indústria,
a qual, por sinal, é consideravelmente rica.
No entanto, uma possível suplantação da ética
de trabalho protestante não é uma coisa que poderia acontecer
de uma hora para a outra, lembra Himanen. Tal evento seria uma grande mudança
cultural e este tipo de coisa demanda muito tempo para se completar. Principalmente,
porque "a ética protestante está tão profundamente
enraizada na nossa consciência atual que ela é freqüentemente
pensada como se fosse simplesmente da 'natureza humana'. Obviamente, não
é" [2], como pode ser visto no decorrer da História.
Enquanto isso, para amenizar os efeitos da confusão feita pela
mídia com relação ao termo hacker, Rezende sugere
em [1] a cunhagem de uma nova palavra para designar esta comunidade, já
que não se tem muito controle sobre a evolução de
uma língua (como ele diz, "o uso faz o idioma"). O termo que ele
relata ter sido escolhido pelos verdadeiros hackers para se autodenominarem
é "geek". Porém, talvez este não tenha em si, pelo
menos ainda não, toda a semântica e história que há
por trás do original, deixando uma sensação de inacurácia
e de que algo está faltando. Por outro lado, também não
carrega toda a contaminação que foi infringida ao termo original
nas últimas décadas.
Na verdade, a melhor solução para esta confusão
seria a fortificação da ideologia hacker, tornando-a clara
e conhecida por todos, o que a deixaria menos vulnerável a falácias
nominais. Mesmo que isso possa se chocar com os interesses de classes atualmente
dominantes. É possível que, conforme a sociedade da informação
vá seguindo o seu caminho e vá amadurecendo, as próprias
necessidades naturais, que inevitavelmente aparecem, encarreguem-se de
implantar esta nova ética de trabalho, a qual, espera-se, possa
ser ao menos um pouco melhor do que a atual.
Referências
[1] REZENDE, Pedro A. D. Sobre o uso do termo "hacker". In:
http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/hackers.htm.
Abril, 2000.
[2] HIMANEN, Pekka. The Hacker Ethic and the Spirit of the Information
Age. Random House, 2001.
[3] COUTO, Sérgio P. O que pensar dos hackers? In: Revista Geek,
Ano III, Número 14. Digerati Editorial. Agosto, 2001.
* Fabrício César Ferreira Anastácio, Bacharelando
em Ciências da Computação da Universidade de Brasília,
aluno da disciplina Segurança dos Dados em 1/02
Fonte:http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/hackers2.htm