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quarta-feira, 12 de dezembro de 2012

Hackers: A ética por trás do folclore

Hackers: A ética por trás do folclore

Hackers: A ética por trás do folclore

Monografia do curso de Segurança de Dados 1/02

Fabrício César Ferreira Anastácio *
Departamento de Ciência da Computação
Universidade de Brasília
Setembro de 2002

Com o crescimento da Internet e a consolidação da chamada Sociedade da Informação muito tem sido dito sobre os tais dos "hackers". "Piratas da Rede", "meliantes digitais" e outras denominações que variam do ridículo ao romantismo cibernético contribuem para a criação de uma atmosfera mítica coberta de mistério e, certamente, equívocos em torno destes personagens. É comum deparar-se na mídia com este termo sendo usado num sentido bastante pejorativo, conotando indissociável relação com o crime e a ilegalidade. Seja nos filmes de Hollywood ou no jornal cotidiano, os hackers usam seu profundo conhecimento do funcionamento dos computadores e das redes de comunicações para perpetrarem sofisticados delitos, causando danos a terceiros e/ou enriquecendo num digitar de teclas. Colocando o sensacionalismo e a extravagância de lado, isto tudo poderia estar correto exceto pelo fato de que os agentes de atividades desta estirpe não são hackers, mas sim "crackers".
Esta confusão não é apenas um erro de tradução, como afirma Rezende em [1], já que ocorre mesmo em sua língua original, observando-se isso claramente na reportagem de popular, ainda que não muito confiável, órgão de impressa norte-americano referenciada pelo próprio texto citado. Na verdade, segundo Pekka Himanen (foto), filósofo finlandês, em [2], a origem deste equívoco remontaria a meados dos anos 80, quando surgiram os primeiros crimes computacionais, e a mídia, não sabendo como designar tais criminosos, aplicou o termo de forma um tanto infeliz.
Ora, se não são os tais meliantes digitais, afinal, quem são os hackers?
A tradução literal da palavra poderia ser algo como talhador, lenhador, o que não deixa de ter alguma relação com o sentido originalmente concebido. Este sentido surgiu no início dos anos 60 no MIT, sendo usado como autodenominação por um grupo de programadores apaixonados por sua atividade. Com uma certa boa vontade, pode-se imaginá-los como "lapidários" de código escrito em linguagens de programação. Deixando-se tomar pela analogia inspiradora feita por Rezende em [1], se uma linguagem de programação puder ser comparada a uma linguagem natural, sendo o código-fonte comparado a um texto, um programa a um livro e um programador a um escritor, um hacker seria um poeta desta literatura.

Um hacker é uma pessoa para quem a programação é uma paixão e que compartilha os frutos de sua paixão com os outros, é um título honorário, como reforça Himanen em uma entrevista em [3]. Não é um criminoso de computador. Em [2], Himanen traz o que seria a definição de hacker compilada pelos próprios: "uma pessoa que programa entusiasticamente e que acredita que compartilhar informação é um poderoso bem concreto e que seja um dever moral compartilhar a sua perícia escrevendo software livre e facilitando o acesso a informação e a recursos computacionais onde for possível", é alguém que "acha programar intrinsecamente interessante, empolgante e divertido" [2].
Um outro ponto destacado pelo filósofo finlandês é que um hacker não está limitado ao mundo da informática. Praticamente, em qualquer área de atividade humana, podem ser encontrados hackers. Eles seriam "experts" ou entusiastas de qualquer tipo. Pode haver "hacker carpinteiro", "hacker jornalista", "hacker gerente", "hacker astrônomo" ou hacker qualquer outra coisa. Em suma, "uma pessoa é hacker quando é apaixonada pelo que faz e quer se realizar naquele trabalho" [3].
No entanto, esta definição ainda não é muito conhecida ou difundida nos meios "formadores de opinião". Pior é quando, mesmo sendo conhecida, ela é deliberadamente ignorada em prol de uma suposta simplicidade destinada a "facilitar" o entendimento por parte do leitor/espectador leigo. Como se não bastasse a argumentação absurda e contraditória de justificar a criação de confusão para elucidar a compreensão, este recorrente engano tem significativas conseqüências. Além de dificultar a correta assimilação de conceitos e dinâmicas da comunidade da Rede, isto mistura meros utilizadores mal-intencionados (ou, por vezes, apenas curiosos demais) de ferramentas prontas disponíveis aos montes na Internet, os chamados "script kiddies", com os verdadeiros crackers (que podem ocasionalmente ser hackers).

Estes crackers é que são os responsáveis pelos verdadeiros crimes. São eles que dão volumosas cifras de prejuízo a empresas e governos e, muitas vezes, agem amparados por quadrilhas altamente especializadas. Assim, ao colocar estas "tribos" totalmente diferentes em condição de igualdade, a mídia acaba encobrindo a complexidade do sério problema de segurança aí existente e dificulta sobremaneira o esclarecimento de quem são os reais responsáveis por ele, sendo crassamente injusta.
Injustiça esta que se torna ainda mais evidente diante da elucidação das contribuições fundamentais dadas pelo hackers para o embasamento tecnológico da sociedade emergente. Como destacado por Himanen em [2], alguns dos símbolos mais conhecidos dos tempos atuais - a Internet, o computador pessoal e softwares como o sistema operacional Linux - foram criados primordialmente por alguns entusiásticos indivíduos que começaram a concretizar suas idéias com outros de pensamento semelhante, trabalhando em um ritmo livre. Rezende, em [1], compara a atuação dos hackers em relação ao software com a ação da seleção natural na evolução das espécies naturais. Eles seriam uma forma de agentes seletores, que garantiriam a sobrevivência dos mais aptos, descobrindo vulnerabilidades e falhas de segurança nos softwares em uso e reportando os problemas encontrados aos respectivos desenvolvedores, chegando mesmo a sugerir soluções e correções.
Rezende destaca que, por vezes, para amenizar o erro de designação, tais indivíduos são chamados de "hackers éticos". No entanto, isto só piora a confusão, pois reforça a idéia de que o hacker por natureza não é ético. Tal suposição não poderia ser mais difamatória, pois não apenas o hacker é ético em sua natureza original, mas se pode até mesmo falar de toda uma "Ética Hacker".
Para entender melhor esta ética, é necessário antes conhecer melhor o contexto histórico e social no qual ela surge. O pensamento ainda predominante na sociedade atual e que marcou distintamente toda a Era Industrial, de acordo com Himanen, é o que Max Weber chamou de "Ética de Trabalho Protestante" em sua obra The Protestant Ethic and the Spirit of Capitalism (1904-1905). Esta ética baseia-se fortemente na idéia de que o trabalho é a coisa mais importante na existência de uma pessoa. É ele que dá sentido à vida. O trabalho é visto como um fim em si mesmo. Não importa no que ele consista, ele deve ser feito da melhor maneira possível, sem questionamento ou lamúrias. É uma questão de consciência, é como um "chamado" divino.
Este ponto de vista só encontra precursores na vida monástica, a qual sempre pregou que "o ócio é o inimigo da alma", e contrasta fortemente com a visão geral predominante antes do século XVI. Mesmo a Igreja considerava o trabalho (especialmente o mais árduo) como uma espécie de punição. No dia santo, o domingo, no qual até mesmo o próprio Deus descansou, não se devia trabalhar. O Céu era um lugar onde, assim como no domingo, ninguém precisava trabalhar. Enquanto que, no Inferno, os pecadores são condenados a trabalhos eternos e inúteis, um terrível sofrimento, como Dante Alighieri muitas vezes mostra no seu clássico A Divina Comédia do século XIV. Pode-se dizer que, nessa época, o propósito da vida era o domingo.
O que a ética de trabalho protestante faz é inverter este paradigma, deslocando o propósito da vida para a sexta-feira. O trabalho deixa de ser uma punição e passa a ser uma bênção. Isto é um movimento tão radical que se pode dizer que o Céu e o Inferno trocaram de lugar. Sísifo, que na mitologia grega tentou enganar os deuses e foi punido com o fardo de empurrar eternamente uma grande rocha até ao cume de uma montanha muito íngreme e, quando ele estava preste a chegar com ela ao topo, a rocha caía, tornou-se um herói, como ilustrado por Himanen [2].

Esta reviravolta de pensamento e principalmente na forma de se encarar o trabalho caiu como uma luva para o desenvolvimento do então nascente capitalismo. Esta justificativa de origem religiosa foi rapidamente tomada e incorporada por ele, que logo a separou da religião e imprimiu seus próprios mecanismos. Com isso, passou-se a poder falar em ética protestante independentemente de fé ou cultura. Este fato foi a base que permitiu o florescimento da Era Industrial, na qual os trabalhos eram árduos e enfadonhos, mas era necessário que alguém os fizesse, fosse na Europa ou no Japão.
Com o fim da Era Industrial e a consolidação do que está sendo designado como Era da Informação, é natural que se espere o surgimento de um novo pensamento que questione estes valores vigentes, mesmo que o capitalismo ainda tenha chegado a este ponto com considerável força. Força esta que pode ser vista na formação da "nova economia" que, embora envolva significantes diferenças na sociedade em rede com relação à anterior industrial, é meramente uma nova forma de capitalismo. É justamente neste cenário que emerge o que foi chamado anteriormente de ética hacker.
De acordo com Himanen, a ética hacker, que deve ser entendida abrangendo todas as áreas de atividade humana e não apenas a computação, é uma nova ética de trabalho que questiona a ética protestante e propõe um espírito alternativo para a sociedade em rede. Embora seja mais próxima da ética de trabalho pré-protestante, ela não concebe este como sendo um castigo e não descreve o paraíso como sendo um lugar onde não se faz coisa alguma. Na visão do hacker, o sentido da vida está em dedicar-se a uma paixão. Esta paixão é, na realidade, uma atividade significativa, inspiradora e prazerosa para o indivíduo, seja ela rotulada como "trabalho" ou como "diversão".

No entanto, a sua realização nem sempre é apenas prazer e alegria, podendo envolver aspectos menos interessantes e apaixonantes e mesmo muito trabalho duro e tedioso. Ainda assim, o hacker está disposto a realizar este esforço em prol de algo que considera maior. A significação do todo faz valer a pena qualquer esforço despendido na execução de suas partes menos atraentes. Além disso, é bem diferente ter de fazer partes menos prazerosas ao realizar uma paixão do que ter de se sujeitar permanentemente a um trabalho desagradável.
Um outro aspecto da ética hacker é uma visão fortemente diferente do dinheiro com relação à vigente na sociedade capitalista, na qual este é o maior e mais valorizado bem. Para o hacker, o dinheiro é uma questão secundária. Não é um objetivo de vida nem a razão do seu trabalho. Ele não é o propósito de uma ação. Assim, um hacker "pode se satisfazer com menos riqueza material ao perceber que sua verdadeira paixão deu uma contribuição para os outros" [3] ou para a sociedade de um modo geral.
Aliás, esta motivação social também é um fator importante nesta nova ética. A realização da paixão hacker está intimamente ligada com alguma espécie de colaboração na construção de um bem maior para a sociedade. Isto poderia ser visto até como uma influência meio hippie, anos 60, do tipo "vamos construir um mundo melhor", mas tem uma importância fundamental para a estruturação de toda esta ideologia.
Talvez esteja no "hackerismo" o melhor exemplo do lado positivo da globalização, entendendo-se "hackerismo" como um grupo de indivíduos realizando suas paixões juntos e fora das estruturas de corporações ou governos. Não importa a nacionalidade, cor, raça das outras pessoas. O que importa é que elas estão juntas, provavelmente por meio da Internet, para fazer coisas que acham interessantes e construtivas.
Obviamente, um movimento que se propõe a questionar o modelo corrente não poderia passar sem causar desconforto naqueles que estão bem estabelecidos e confortáveis beneficiando-se do status quo. Pode-se especular, então, que esta "onda difamatória" [1] que causa esta confusão toda na cabeça do cidadão comum tenha origem nos "interesses da indústria de software proprietário, procurando minar a confiabilidade pública no software livre" [1], como sugere Rezende. Seguindo por estes caminhos, também não se pode descartar a possibilidade de conluio ou mesmo de manipulação da mídia, visando a proteção desta mesma indústria, a qual, por sinal, é consideravelmente rica.
No entanto, uma possível suplantação da ética de trabalho protestante não é uma coisa que poderia acontecer de uma hora para a outra, lembra Himanen. Tal evento seria uma grande mudança cultural e este tipo de coisa demanda muito tempo para se completar. Principalmente, porque "a ética protestante está tão profundamente enraizada na nossa consciência atual que ela é freqüentemente pensada como se fosse simplesmente da 'natureza humana'. Obviamente, não é" [2], como pode ser visto no decorrer da História.
Enquanto isso, para amenizar os efeitos da confusão feita pela mídia com relação ao termo hacker, Rezende sugere em [1] a cunhagem de uma nova palavra para designar esta comunidade, já que não se tem muito controle sobre a evolução de uma língua (como ele diz, "o uso faz o idioma"). O termo que ele relata ter sido escolhido pelos verdadeiros hackers para se autodenominarem é "geek". Porém, talvez este não tenha em si, pelo menos ainda não, toda a semântica e história que há por trás do original, deixando uma sensação de inacurácia e de que algo está faltando. Por outro lado, também não carrega toda a contaminação que foi infringida ao termo original nas últimas décadas.
Na verdade, a melhor solução para esta confusão seria a fortificação da ideologia hacker, tornando-a clara e conhecida por todos, o que a deixaria menos vulnerável a falácias nominais. Mesmo que isso possa se chocar com os interesses de classes atualmente dominantes. É possível que, conforme a sociedade da informação vá seguindo o seu caminho e vá amadurecendo, as próprias necessidades naturais, que inevitavelmente aparecem, encarreguem-se de implantar esta nova ética de trabalho, a qual, espera-se, possa ser ao menos um pouco melhor do que a atual.

Referências

[1] REZENDE, Pedro A. D. Sobre o uso do termo "hacker". In: http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/hackers.htm. Abril, 2000. [2] HIMANEN, Pekka. The Hacker Ethic and the Spirit of the Information Age. Random House, 2001.
[3] COUTO, Sérgio P. O que pensar dos hackers? In: Revista Geek, Ano III, Número 14. Digerati Editorial. Agosto, 2001.

* Fabrício César Ferreira Anastácio, Bacharelando em Ciências da Computação da Universidade de Brasília, aluno da disciplina Segurança dos Dados em 1/02

Fonte:http://www.cic.unb.br/docentes/pedro/trabs/hackers2.htm